Jornal, pedaços de pano ou folhas de árvores usados de forma improvisada no lugar de um absorvente para conter a menstruação. Se para a maior parte da população que menstrua os cuidados são apenas mais um hábito de higiene, para uma pequena, mas significativa, parcela desse público a realidade são condições precárias de higiene, como falta de acesso a itens básicos, falta de informação e de apoio nesse período.
A pobreza menstrual, como a situação ficou conhecida, chegou ao Senado por iniciativa popular. Vindas de mulheres. Duas sugestões legislativas tramitam na Casa depois de conseguirem na internet os 20 mil apoios necessários para serem analisadas pela Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa (CDH). Ambas propõem a distribuição gratuita de absorventes para quem não tem condição de comprá-los.
As propostas coincidem com a Recomendação 21, de 2020, aprovada em dezembro pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), órgão ligado ao governo federal. O ato recomenda ao presidente da República e ao Congresso Nacional a criação de uma política nacional de superação da pobreza menstrual.
Com a medida, o conselho quer assegurar a mulheres, meninas, homens trans e demais pessoas com útero o acesso a itens como absorventes femininos, tampões íntimos e coletores menstruais. O documento sugere ainda que sejam priorizados produtos com menor impacto ambiental.
Após o veto da distribuição gratuita de absorventes por parte do presidente Jair Bolsonaro, o tema despertou ainda mais dúvidas. Mas, afinal, o que é?
Desde 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) considera o acesso à higiene menstrual um direito que precisa ser tratado como uma questão de saúde pública e de direitos humanos.
Fundamentada nesses posicionamentos, a senadora Zenaide Maia (Pros-RN), relatora da SUG 43/2019, apresentada pela cidadã pernambucana Emilly Silva, deu parecer favorável à proposição.
Pelo texto, calcinhas absorventes, absorventes externos e internos e coletores menstruais, descartáveis ou não, devem ser distribuídos gratuitamente em postos de saúde e nas unidades prisionais. Zenaide Maia estima um gasto de R$ 30 por ciclo menstrual. Ela destaca que, como quase 13% da população vive com menos de R$ 246 reais por mês, “menstruar pode ser caro”.
— Quando você não tem dinheiro nem mesmo para comprar comida, itens de higiene como absorventes são itens de luxo. Imagine essa realidade no Brasil da pandemia, que tem 19 milhões de pessoas passando fome — afirmou a senadora à Agência Senado.
O mesmo alerta havia sido feito pela estudante Hillary Gomes, do Distrito Federal, autora da segunda sugestão legislativa sobre o tema (SUG 7/2021): “Menstruação é algo normal para a maioria das pessoas com útero, mas, infelizmente, algumas delas não possuem condição financeira suficiente para comprar todo mês um pacote de absorvente. Hillary acrescenta que o Sistema Único de Saúde distribui preservativos para evitar as doenças sexualmente transmissíveis, mas não faz o mesmo com os absorventes.
Menstruar na escola
Diante do pouco dinheiro para produtos básicos de sobrevivência, são adolescentes o alvo mais vulnerável à precariedade menstrual. Sofrem com dois fatores: o desconhecimento da importância da higiene menstrual para sua saúde e a dependência dos pais ou familiares para a compra do absorvente, que acaba entrando na lista de artigos supérfluos da casa.
A falta do absorvente afeta diretamente o desempenho escolar dessas estudantes e, como consequência, restringe o desenvolvimento de seu potencial na vida adulta. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013, do IBGE, revelaram que, das meninas entre 10 e 19 anos que deixaram de fazer alguma atividade (estudar, realizar afazeres domésticos, trabalhar ou até mesmo brincar) por problemas de saúde nos 14 dias anteriores à data da pesquisa, 2,88% delas deixaram de fazê-la por problemas menstruais. Para efeitos de comparação, o índice de meninas que relataram não ter conseguido realizar alguma de suas atividades por gravidez e parto foi menor: 2,55%.
Dados da ONU apontam que, no mundo, uma em cada dez meninas falta às aulas durante o período menstrual. No Brasil, esse número é ainda maior: uma entre quatro estudantes já deixou de ir à escola por não ter absorventes.
Segundo a PNS 2013, a média de idade da primeira menstruação nas mulheres brasileiras é de 13 anos, sendo que quase 90% delas têm essa primeira experiência entre 11 e 15 anos de idade. Assim, a maioria absoluta das meninas passará boa parte de sua vida escolar menstruando.
Com isso, perdem, em média, até 45 dias de aula, por ano letivo, como revela o levantamento “Impacto da Pobreza Menstrual no Brasil”, encomendado por uma marca de absorvente e feito pela consultoria Toluna. O ato biológico de menstruar acaba por virar mais um fator de desigualdade de oportunidades entre os gêneros.
Primeira menstruação
A opção por ficar em casa é justificada ao se ver quão hostil pode ser o ambiente escolar para estudantes que menstruam. Como ainda estão em fase de crescimento, os ciclos costumam ser irregulares, o que pode provocar um fluxo de sangue inesperado, manchando a roupa e as tornando alvo de brincadeiras de mau gosto e preconceito. Além disso, não há, em boa parte das escolas, infraestrutura de higiene suficiente para atender suas necessidades básicas.
De acordo com o estudo “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, divulgado pelo Unicef e pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) em 28 de maio, Dia Internacional da Dignidade Menstrual, mais de 4 milhões de estudantes frequentam colégios com estrutura deficiente de higiene, como banheiros sem condições de uso, sem pias ou lavatórios, papel higiênico e sabão. Desse total, quase 200 mil não contam com nenhum item de higiene básica no ambiente escolar.
A situação é ainda pior quando se leva em conta que 713 mil meninas não têm acesso a nenhum banheiro (com chuveiro e sanitário) em suas casas. E outras 632 mil meninas vivem sem sequer um banheiro de uso comum no terreno ou propriedade.
O relatório do Unicef aponta os riscos para a saúde de um manejo inadequado da menstruação: alergia e irritação da pele e mucosas, infecções urogenitais como a cistite e a candidíase, e até uma condição conhecida como Síndrome do Choque Tóxico, que pode levar à morte. E acrescenta a esses riscos o dano emocional provocado pela pobreza menstrual.
“Pode causar desconfortos, insegurança e estresse, contribuindo assim para aumentar a discriminação que meninas e mulheres sofrem. Põe em xeque o bem-estar, desenvolvimento e oportunidades para as meninas, já que elas temem vazamentos, dormem mal, perdem atividades de lazer, deixam de realizar atividades físicas; sofrem ainda com a diminuição da concentração e da produtividade”, alerta o documento.
— Muitas meninas começam a menstruar entre os 10 e 13 anos e esse é um período que a socialização importa bastante, para formar laços e ajudá-las a conhecer o mundo. Além disso, as meninas faltarem as aulas por conta da menstruação prejudica o processo de aprendizado e gera impactos em sua vida adulta”, reforça Dandara Santos, integrante do Girl Up, movimento fundado pela ONU em 2010, que luta pela igualdade de gênero em 125 países.
Dandara é do Ceará, onde as jovens criaram o movimento Cadê o Modes, de informação sobre a dignidade menstrual. Um dos principais trabalhos do grupo é atuar junto ao Poder Legislativo para aprovação de leis e políticas públicas que distribuam absorventes gratuitamente.
A luta da Girl Up e de outras entidades de mulheres contabiliza sucessos. No Distrito Federal, foi sancionada em janeiro proposta que inclui na Política de Assistência Integral à Mulher a distribuição gratuita de insumos de higiene e absorventes nos postos de saúde para pessoas de baixa renda. Apesar de sancionada, a lei ainda não foi implementada totalmente, e as meninas do Girl Up pressionam para que seja adotada na prática.
O Rio de Janeiro também sancionou lei semelhante, com a inclusão do absorvente nas cestas básicas distribuídas pelo governo do estado. Já no Maranhão, São Paulo e Amazonas, os absorventes serão distribuídos nas escolas públicas. No Ceará, projeto igual aguarda sanção do governo.
— Temos que derrubar de vez esse tabu e falar mais publicamente sobre a pobreza menstrual. Espero que quando os trabalhos das comissões voltem no Senado, a CDH coloque em pauta as sugestões legislativas que tratam desse assunto — afirmou Zenaide à Rádio Senado.
As sugestões precisam ser aprovadas na CDH para começarem a tramitar como projetos de lei e irem à votação em Plenário. Para o senador Fabiano Contarato (Rede-ES), as proposições devem ser aprovadas na Casa.
— Precisamos apoiar as mulheres sempre. Todas as mulheres passam, além da violência, da desigualdade social. Nós temos de lhes dar o mínimo de dignidade — resumiu.
Mulheres encarceradas
O relatório apresentado pela senadora Zenaide Maia inclui pessoas encarceradas, outras das principais vítimas da pobreza menstrual, entre as beneficiadas do projeto. Atualmente, o Brasil registra 37.828 mulheres presas, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).
— O kit de higiene distribuído nos presídios, agora que essa situação melhorou um pouco, era o mesmo para mulheres e homens. Não tinha absorventes, e se ganhava o mesmo tanto de papel higiênico, sendo que nós mulheres usamos papel higiênico para duas necessidades em vez de uma — contou Nana Queiroz, escritora e ativista dos direitos das mulheres, autora do livro Presos que Menstruam, sobre as dificuldades das mulheres nas prisões.
Nana explica que as condenações são pela perda de liberdade e não do tratamento humanitário a que todos têm direito. A falta de tratamento digno derruba a autoestima e dificulta a reintegração social, que deveria ser objetivo final do encarceramento.
— Eu vi algumas mulheres usando miolo de pão, jornal, pedaço de pano, papel higiênico. Tudo isso é precário. Uma mulher com fluxo menstrual grande tem de ficar trocando a cada 20 minutos, isso é impraticável para você estudar ou trabalhar. A vida da mulher fica paralisada por aquela semana em que ela está menstruando se essa necessidade não é atendida — afirmou.
Nana alerta que combater a pobreza menstrual nas escolas é ainda mais importante. Para ela, se absorventes fossem distribuídos gratuitamente nas instituições de ensino, a taxa de evasão feminina seria muito menor e o desenvolvimento escolar das meninas seria maior.
— Eu fico muito feliz em ver projetos de lei que pensam na pobreza menstrual pipocando em todos os lugares neste momento, tanto no Senado quanto na Câmara, porque é só pensando nisso que a gente vai conseguir começar a combater algumas desigualdades que começam no sistema escolar e atravessam todos os sistemas sociais.
Na Câmara dos Deputados tramitam hoje pelo menos dez propostas que tratam do assunto. O Projeto de Lei 61/2021, que propõe a distribuição de absorventes higiênicos pelo SUS; e o PL 4.968/2019, que cria um programa de distribuição gratuita de absorventes higiênicos para todas as alunas das escolas públicas, são exemplos.
Já os PLs 128/2021, 1.702/2021 e 3.085/2019 tratam da isenção de impostos para produtos de higiene menstrual. A intenção é zerar alíquotas da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e da contribuição para o PIS/Pasep incidentes sobre os absorventes e tampões higiênicos.
O Brasil possui tributação elevada sobre absorventes. Apesar de terem alíquota zero do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), ainda incidem sobre o produto PIS, Cofins (ambos federais) e ICMS (estadual).
A isenção de tributos em produtos de higiene menstrual já é prática em países como Alemanha, Canadá, Quênia e Índia. França, Inglaterra e Luxemburgo optaram por apenas reduzir o encargo.
A Escócia, em novembro do ano passado, tornou-se a primeira nação a tornar gratuito e universal o acesso a esse tipo de produto. A lei determina que os governos locais devem garantir que absorventes externos, internos, de pano e produtos como coletores menstruais estejam disponíveis em escolas, faculdades, banheiros públicos, centros comunitários e farmácias, sem a exigência de cobrança.