O Eternauta – por Jader Corrêa

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O Eternauta – por Jader Corrêa
ERA UMA VEZ UM QUADRINHO
1 de maio de 2025 - O Eternauta / Crédito: Divulgação

 

Poucas histórias em quadrinhos latino-americanas atingiram a profundidade política, filosófica e emocional de O Eternauta (El Eternauta), considerada a mais importante HQ da Argentina e uma das mais influentes da América Latina. Criada em 1957 pelo roteirista Héctor Germán Oesterheld e ilustrada por Francisco Solano López, a obra transcende o gênero da ficção científica para se tornar um potente símbolo de resistência e memória histórica.

Confira:

 

A origem de uma ficção que fala do real

O Eternauta começou a ser publicada em forma de folhetim na revista Hora Cero Semanal, entre 1957 e 1959. A história nasceu num contexto em que a Argentina vivia intensas transformações políticas, com golpes militares, perseguições e censura. Embora se trate de uma narrativa de ficção científica, com alienígenas, nevascas mortais e uma luta pela sobrevivência, O Eternauta é uma metáfora poderosa sobre opressão, colonialismo e o papel do povo comum diante do autoritarismo.

Héctor Oesterheld, um autor de histórias infantis e aventuras populares como Sargento Kirk, passou a desenvolver uma visão cada vez mais crítica da realidade. Em O Eternauta, ele canalizou essa inquietação, transformando a figura tradicional do herói num homem comum. Segundo o autor, “o verdadeiro herói é coletivo”, não é um indivíduo com poderes especiais, mas sim aquele que resiste junto com os outros.


A trama de O Eternauta

A história começa com um quadrinista, que seria o próprio Oesterheld, encontrando em sua casa um estranho visitante que surge do nada: é Juan Salvo, o Eternauta, um viajante do tempo e do espaço. Ele começa a narrar os eventos trágicos que viveu em Buenos Aires, quando uma misteriosa nevasca radioativa cai sobre a cidade, matando milhares. Juan, sua esposa Elena, sua filha Martita e um grupo de vizinhos se refugiam em uma casa e iniciam uma batalha desesperada para sobreviver.

Logo, eles descobrem que a catástrofe não é natural: é uma invasão alienígena organizada por seres chamados Ellos (“Eles”), que controlam diversas raças intermediárias como os Manos (alienígenas sensíveis e escravizados), os Gurbos (criaturas de combate), e os Hombres-Robot (humanos convertidos em máquinas). A resistência humana, formada por civis comuns, enfrenta uma luta desigual.

Juan Salvo acaba ficando preso em um ciclo de viagens no tempo e no espaço, tentando encontrar sua família, e assim se torna o Eternauta — o “nauta da eternidade”, condenado a vagar pela história.


Metáforas e crítica social

O que torna O Eternauta uma obra singular é sua leitura alegórica da realidade argentina e latino-americana. A neve tóxica que cai do céu e mata silenciosamente lembra as formas invisíveis de opressão. A invasão estrangeira representa tanto o imperialismo quanto as ditaduras militares que se impunham pelo controle e pelo medo. O herói coletivo que resiste remete às lutas populares contra regimes autoritários.

Oesterheld, com o tempo, tornou-se um militante da guerrilha Montoneros e passou a usar os quadrinhos de forma mais explícita como ferramenta de denúncia e conscientização. Em 1976, ele foi sequestrado pela ditadura militar argentina, assim como suas quatro filhas. Todos desapareceram, tornando-se vítimas do terrorismo de Estado.

Essa tragédia pessoal ressignifica O Eternauta. A obra passou a ser lida não apenas como ficção, mas como um grito de alerta. Juan Salvo, perdido no tempo, tornou-se símbolo de todos os desaparecidos.


Versões posteriores e censura

Em 1969, Oesterheld e Solano López publicaram uma segunda versão da HQ, desta vez com um tom mais abertamente político. Juan Salvo aparece mais combativo, e a invasão alienígena é usada como metáfora explícita para a repressão estatal. Essa versão foi duramente censurada e retirada de circulação.

Mais tarde, outras continuações foram escritas — algumas por Solano López com outros roteiristas, mas nenhuma obteve o mesmo impacto da original. As sequências incluem El Eternauta II, El Eternauta, el regreso, entre outras.


Legado cultural

O Eternauta foi traduzido para diversos idiomas e é hoje estudado em escolas e universidades. Tornou-se referência em estudos sobre quadrinhos políticos e memória histórica. Sua imagem e frases marcantes apareceram em protestos na Argentina e em homenagens aos desaparecidos da ditadura.

A obra também inspirou cineastas, músicos, escritores e ativistas. Durante o governo de Cristina Kirchner, a figura do Eternauta foi usada como símbolo de resistência popular, gerando também controvérsias sobre sua apropriação política.

Em 2021, a Netflix anunciou que estava desenvolvendo uma série baseada em O Eternauta, com produção argentina e apoio da família de Oesterheld, reacendendo o interesse internacional pela HQ.


Netflix

Baseada na icônica graphic novel, “O Eternauta” teve sua estreia na Netflix nesta quarta-feira (30):

 

O Eternauta | Trailer oficial | Netflix

 

O Eternauta é mais do que uma história em quadrinhos de ficção científica. É uma reflexão profunda sobre a condição humana, a luta contra a opressão e a importância da memória. Ao retratar o heroísmo do homem comum diante de forças gigantescas e impiedosas, Oesterheld deixou um legado que atravessa gerações. Assim como Juan Salvo, seguimos viajando pelo tempo — mas agora com a consciência de que lembrar é resistir.